1. Pluralismo religioso e a luta dos deuses.
Pluralismo religioso, como um fato social, isto é, a coexistência de diversas religiões dentro de um mesmo sistema social – seja um país ou um império –, não é algo novo. O simples contato com outros povos, com religiões diferentes da sua, por exemplo, através do comércio, não significa ainda o pluralismo religioso. Nesse caso, cada povo tem a sua religião, os seus deuses, e reconhecem que existem outros povos com outras religiões e deuses. O pluralismo religioso ocorre quando, por causa de imigração ou da conquista de um povo sobre outro, convivem em um mesmo espaço social grupos com religiões diferentes.
Seja por imigração ou por conquista, o pluralismo religioso resultante não se dá de uma forma igualitária ou harmoniosa. Os imigrantes são obrigados a viverem sua religião no âmbito do seu grupo como uma religião marginal na sociedade, ou até mesmo na clandestinidade quando não é aceito na sociedade para onde foram buscar meios de sobrevivência. No caso das conquistas ou expansão dos impérios, o poder conquistador impõe seus valores culturais e sua religião sobre povos conquistados. O império pode tentar extinguir as religiões dos povos conquistados e impor a sua como a única aceitável, ou tolerá-las desde que essas religiões não questionem a ordem imperial. Isto é, a coexistência de diversas religiões dentro do império se dá em uma relação hierarquizada: a religião do império é a suprema e as outras são toleradas desde que aceitem ocupar um lugar subalterno. O Império Romano foi um exemplo do império que tolerava religiões dos povos submetidos desde que essas não questionassem o poderio absoluto do Império, com sua religião do império e o culto ao imperador.
Nesse contexto histórico, é empiricamente quase impossível a realização de um terceiro caminho: o do reconhecimento da alteridade do outro e o respeito pela religião do outro como respeitamos a nossa. Isso porque o “encontro” entre as religiões se dá em uma situação de conquista e dominação colonial. Esperar que pudesse haver uma relação de respeito e diálogo entre iguais seria desconhecer a função da religião em sociedades pré-modernas, especialmente nos processos de dominação.
Nessas sociedades, a religião tem a função de ser o fundamento da cosmovisão que legitima a ordem social vigente, assim como o processo de conquista externa. A religião cumpre a função de legitimar, de justificar, a conquista e a consequente exploração e opressão do povo conquistado. Com isso, a religião realiza uma tarefa fundamental para sistemas de opressão: a inversão do mal em bem: a conquista como paz, a exploração como caminho da salvação ou integração à civilização. Além disso, a religião imperial transcendentaliza o sistema de opressão e o apresenta como eterno ou como expressão da vontade divina. Por isso, a forma de classificar as religiões e de administrar a convivência entre elas não é um problema só das lideranças das religiões, mas é uma questão de Estado, do interesse do rei ou do imperador. Os limites da tolerância religiosa são determinados por interesses do sistema social dominante, apesar de serem muitas vezes discutidas através de linguagens religiosas ou teológica.
É claro que nenhuma religião, mesmo as que exercem a função de legitimar um império, é totalmente homogênea. Há ou pode haver dentro dela um “pluralismo teológico”. A figura de Las Casas, na conquista espanhola da América, é um exemplo das contradições que há em todas as religiões. Mas, a defesa dos índios e da religião deles feita por Las Casas teve que ser feita na corte do rei da Espanha. O modo de evangelizar e de ver a cultura e a religião do índio, o outro, é um problema do Estado, e não só da Igreja.
Antes de refletirmos sobre o ideal de um pluralismo religioso que torne possível “a fraternal living together of religions as also a covenant of all those in favor of Peace and the Common Good of Humanity and the Planet”1, precisamos nos lembrar que também a Bíblia registra muita lutas entre o Deus de Israel, Iahweh, e os deuses estrangeiros, elohê, ou simplesmente outros deuses, élohim; como também entre os profetas e os sacerdotes do Templo a serviço do rei. Isso não é expressão de uma belicosidade inerente ao monoteísmo ou algo parecido. Precisamos superar uma visão essencialista das religiões ou de Deus e compreender o fenômeno do pluralismo religioso dentro do seu contexto social e histórico. Como escreveu Severino Croatto, em 1980, em um livro clássico da Teologia da Libertação, A luta dos deuses: os ídolos da opressão e a busca de Deus libertador, “Os deuses são um símbolo, altamente operativo, da força política de um povo. Pode-se afirmar então que todos os deuses estão em luta, como projeção dos conflitos de poder político-social entre os grupos ou povos. [...] os deuses, como símbolos de uma totalidade de sentido, estão em luta entre si.
Assim, do ponto de vista de uma fenomenologia religiosa, a oposição entre Iahweh e Baal não constitui uma novidade. [...] A luta entre os deuses é uma expressão universal do conflito de poderes cuja instância natural e mais evidente é política. E, nisso, nem a Bíblia nem Israel podem ser originais.”2
Michael Löwy, um sociólogo da religião de linha marxista-weberiano, em diálogo com a teologia da libertação, também publicou um livro com título que lembra o livro citado acima, The War of Gods. Religion and Politics in Latin America. Ele diz, “A expressão ‘guerra dos deuses’ é uma referência ao conhecido argumento de Weber sobre o politeísmo dos valores e o conflito insolúvel das crenças básicas (’deuses’) na sociedade moderna. Em Ciências como Vocação (1919) Weber escreveu: ‘Enquanto a vida permanecer imanente e for interpretada em seus próprios termos, ela só conhecerá uma luta incessante desses deuses entre si’.”3
2. Pluralismo religioso no mundo atual.
O tema pluralismo religioso não é tão recente no campo do estudo da religião. No início do século XX, os acadêmicos das ciências da religião (religious studies) abandonaram o paradigma do século XIX, que discutia de modo abstrato e especulativo sobre a origem da religião e subsequente estágios do seu desenvolvimento, para discutir preponderantemente as religiões mundiais e, com isso, aceitar a pluralidade dos processos de desenvolvimento das civilizações e o pluralismo religioso.4 Entretanto, no âmbito da teologia, especialmente na América Latina, o tema é mais recente. Por exemplo, International Theological Commission of EATWOT propôs recentemente que o “paradigma pluralista” esteja entre temas que devem estar na agenda dos próximos anos: “It is time to reconstruct our whole theology on the evidence of ‘pluralism in principle,’ to put an end to the myth of religious superiority in principle, and the shifting of the horizon toward a ‘profound re-ligation [binding together again],’ that situated us beyond the historic exclusivisms and inclusivisms.”5
Sem entrar em debate sobre por que a teologia, especialmente no Ocidente, levou tanto tempo para lidar com esse tema do pluralismo religioso, eu quero chamar atenção para o contexto em que se dá essa discussão teológica sobre pluralismo religioso e as práticas de diálogo inter-religioso. Nos tempos atuais, quando ocorre, por exemplo, um encontro entre o papa e o Dalai Lama ou entre o papa e um líder do Islã, os meios de comunicação internacional apresentam esses eventos como um fato positivo para o avanço da civilização. É claro que encontramos no interior do campo religioso pessoas e grupos que são contra esse tipo de diálogo em nome da superioridade da sua própria religião. Mas, a sociedade em geral recebe de modo positivo.
A mesma coisa ocorre com a proposta de teologia cristã do pluralismo religioso. Segundo, José Maria Vigil, existe nessa proposta um núcleo fundamental, uma base mínima comum, que pode ser reduzida a dois princípios elementares: a) ter “como ponto de partida a aceitação sincera e cordial de todas as religiões – em princípio ao menos - em sua plena dignidade”; b) “renunciar à consciência de privilégio: A consciência de que nossa religião é a única, de que nós somos os queridos por Deus, os prediletos, os ‘eleitos’, aqueles aos quais Deus confiou a ‘missão’ da salvação das outras religiões e do mundo em geral.”6
Devemos reconhecer que é muito mais fácil para quem estuda religião desde fora, sem perspectiva da fé, reconhecer e aceitar esses dois princípios. É mais difícil para pessoas que dedicam suas vidas ou constroem sua identidade a partir da experiência de fé religiosa concreta. Mas, esse é um desafio que a teologia deve enfrentar e não é o nosso tema aqui. O que quero ressaltar é que essa proposta da teologia do pluralismo religioso e os diálogos inter-religiosos não encontram reações contrárias significativas do sistema social dominante. Na época da conquista da América ou da colonização dos países africanos e asiáticos pelas potências europeias, esse tipo de proposta seria inaceitável, não só para os dirigentes das religiões, mas também para a elite dos países colonizadores. Isso porque a colonização e expansão do império eram legitimadas pela noção da superioridade do Ocidente e da sua religião.
Isso mostra que vivemos em uma época bem diferente. O debate sobre pluralismo religioso e o diálogo inter-religioso, que é uma consequência da aceitação do pluralismo, não deve ser feito tendo o foco somente no tema em si. É preciso trazer à luz o que se torna invisível quando focamos um assunto específico: o seu contexto. É na compreensão dialética do tema e do seu contexto que podemos compreender melhor o alcance e o significado do pluralismo religioso e o diálogo inter-religioso hoje e no passado.
A ausência da reação do atual sistema econômico-social-político dominante, isto é, do sistema capitalista global, mostra que a aceitação pública da exclusividade ou superioridade da religião oficial do sistema ou da elite do sistema não é mais condição necessária para o funcionamento do sistema. Em outras palavras, o fundamento ideológico do sistema não se baseia mais em religião e o processo de exploração e dominação não necessita mais da religião – pelo menos no sentido tradicional – para se legitimar.
Para compreendermos melhor essa situação e não cair no equívoco de que religiões não têm mais força social de contestação a status quo, vale a pena lembrar aqui as reações geradas pelo surgimento da Teologia da Libertação e a opção pelos pobres. Além das críticas vindas dos grandes meios de comunicação, a TL foi objeto de crítica e de preocupação, por exemplo, do The Rockefeller Report on the Americas, 1969, e do documento do Comitê de Santa Fé, elaborado em maio de 1980 por assessores de Ronald Reagan. Esse documento referiu-se explicitamente à TL dizendo: “Lamentavelmente, as forças marxistas-leninistas utilizaram a Igreja como uma arma política contra a propriedade privada e o sistema capitalista de produção, infiltrando a comunidade religiosa com ideias que são menos cristãs que comunistas”.
É importante notar aqui que a reação não se dá em torno de temas religiosos, como a superioridade ou não do cristianismo em relação a outras religiões ou se há salvação fora do cristianismo, mas em torno do sistema capitalista e a propriedade privada. Religiões se tornam objetos de discussão do “império”, não por causa dos temas religiosos, mas por causa dos princípios fundamentais do sistema capitalista. Em outras palavras, as diversas religiões podem existir sem problemas na medida em que não critiquem os fundamentos do sistema e o próprio sistema em si.
A desvinculação entre a religião “oficial” e os mecanismos ideológicos de justificação do sistema dominante não significa que o sistema capitalista não precisa mais se justificar diante de si próprio e diante dos países e grupos que vão sendo incorporados ao sistema capitalista global em uma relação de subalternidade e exploração. A diferença é que esse papel não é mais realizado prioritariamente pelo cristianismo ocidental ou por outras religiões tradicionais. O capitalismo foi capaz de criar a sua própria justificação, sua própria teologia – com noção de transcendência, fé e sacrifício – e não necessita mais das religiões tradicionais. Só que isso é feito em nome da secularização, da ciência e do progresso.
Sob a aparência do ateísmo moderno, da secularização da esfera pública da sociedade e da ciência racional com pretensão de neutralidade ética e o ateísmo metodológico, o sistema capitalista foi capaz de criar a sua própria legitimação, que por falta de outra palavra, vamos chamar aqui de religiosa. Karl Marx também se referia ao capitalismo como “religião da vida cotidiana” movida pelo fetiche da mercadoria, sem caracterizar o capitalismo como uma religião ao lado de outras como cristianismo ou judaísmo. Walter Banjamin escreveu um pequeno texto inédito,7 “Capitalismo como religião”, que começa uma afirmação categórica: “É preciso ver no capitalismo uma religião”, e segue depois dizendo: "Demonstrar a estrutura religiosa do capitalismo – isto é, demonstrar que ele é não somente uma formação condicionada pela religião, como pensa Weber, mas um fenômeno essencialmente religioso– nos levaria ainda hoje pelos meandros de uma polêmica universal desmedida".
Com certeza, essa noção de religião que estamos usando para falar do capitalismo não é no mesmo sentido que o mundo moderno usa para se referir à religião como um campo distinto do secular. Nessa perspectiva moderna de religião, não faz nenhum sentido afirmar que capitalismo é uma religião. Essa noção de religião como contraposto ao secular é uma criação do mundo moderno, pois no mundo pré-moderno a vida pessoal e social e o cosmos estavam sob a visão religiosa. Nesse sentido, a religião não era objeto de discussão ou de estudo, mas sim o meio (environment) dentro do qual as pessoas discutiam as coisas concretas da vida.
Se aceitarmos por esse momento essa noção de capitalismo como religião ou tendo uma estrutura religiosa, vamos perceber que o tema do pluralismo religioso está presente na Teologia da Libertação desde a década de 1970. Só que em uma perspectiva bem diferente da atual proposta da teologia do pluralismo religioso. Na introdução ao livro “A luta dos deuses”, publicado em espanhol em 1980, a Equipe do Dei (um importante centro de pesquisa da Teologia da Libertação, em San José, Costa Rica) disse: “Na América Latina de hoje, o problema central não é a questão do ateísmo, o problema ontológico da existência ou não de Deus. Ser ou não ser, não é essa a questão. [...] não versa sobre o problema do ateísmo, ligado ao secularismo e à crise da própria modernidade ocidental europeia. [...] O problema central está na idolatria como culto aos falsos deuses do sistema de opressão. Mais trágico que o ateísmo é o problema da fé e da esperança nos falsos deuses do sistema. Todo sistema de opressão caracteriza-se precisamente por criar deuses e gerar ídolos sacralizadores da opressão e antivida. [...] A busca de Deus verdadeiro nessa luta dos deuses leva-nos ao discernimento antiidolátrico dos falsos deuses, dos fetiches que matam e de suas mortais armas religiosas. A fé no Deus libertador, no Deus que revela seu rosto e mistério na luta dos pobres contra a opressão, passa necessariamente pela negação e a apostasia dos falsos deuses. A fé torna-se antiiolátrica.”8
Nessa longa citação não encontramos referência a outras religiões, nem ao diálogo inter-religioso, mas o enfrentamento do cristianismo da libertação com os deuses da opressão. O sistema capitalista é compreendido como uma religião idolátrica e a relação com ela não é de diálogo, mas de confrontação. O foco não está na religião ou na convivência entre as diversas religiões do mundo, mas no enfrentamento entre Deus da Vida e os ídolos. Essa afirmação situa o pluralismo religioso e o diálogo inter-religioso não em um mundo ateu ou secularizado, mas em um mundo idolátrico.
3. Capitalismo como religião
Vários teólogos da libertação, especialmente Franz Hinkelammert e Hugo Assmann, escreveram um conjunto considerável de textos analisando a relação entre teologia e economia e a crítica teológica a economia. Entre os diversos livros, vale a pena destacar a obra “A idolatria do mercado”, escrito por esses dois teólogos. Eu mesmo escrevi diversos textos mostrando os pressupostos teológicos da economia capitalista (a fé no mercado, a noção de transcendência e o sacrificialismo). Contudo, na nossa discussão sobre o capitalismo como religião e o pluralismo religioso, penso que é importante aprofundarmos a noção de capitalismo como religião.
Como o tempo de minha apresentação é limitado, não é possível resumir as contribuições já feitas pela teologia da libertação; que infelizmente não está muito disponível em inglês. Quero simplesmente propor aqui algumas reflexões visando estimular a pesquisa na compreensão do capitalismo como religião ou a estrutura religiosa do capitalismo.
Em primeiro lugar, é preciso descrever algumas características básicas do atual sistema capitalista ou do sistema de mercado capitalista global.
A primeira é a exigência de acumulação ilimitada do capital. É importante notar que falamos de “exigência” e não de um simples objetivo que pode ser trocado. Em termos sistêmicos, as empresas capitalistas não têm opção de não buscar a acumulação de capital sob o risco de ser expulso do mercado pelos seus concorrentes. Em termos subjetivos, quem dirige as empresas tem a exigência, até legal, de defender os interesses econômicos dos acionistas e buscar a maximização do lucro. E como o enriquecimento é avaliado em termos contábeis, não existe nenhum limite ou saciedade que haveria se a produção fosse orientada para as necessidades de consumo. É o que os livros de manuais de economia chamam de a busca de acumulação ilimitada de riqueza.
A segunda é o que Karl Polanyi chamou de “mercado autorregulado”9. A história da economia não é uma evolução linear do mercado, como gostam de propagar os ideólogos do capitalismo. Com o surgimento do capitalismo, há uma mudança profunda no papel do mercado na vida social. Há a criação de um mercado que não se submete, ou que não pretende se submeter a regras de outras instâncias – como da moral, religião ou política – a não ser as suas próprias. O neoliberalismo é a proposta de realização dessa visão utópica de um mercado totalmente isenta de preocupações de outra ordem que não a liberdade do mercado e a de acumulação do capital. O contrato e a propriedade privada se tornam únicas regras estáveis e nenhum valor ou princípio “tradicional”, natural, religioso, ou “humanista” pode ser usado como fundamento para intervenção no mercado.
A terceira característica que penso ser importante para nossa reflexão do capitalismo como religião é o que Schumpeter chamou de “destruição criativa”.10 O capitalismo, por sua própria natureza, está em constante e permanente evolução com novos produtos, métodos de produção e distribuição, e novos mercados. Ele desenvolve e se recria constantemente transformando a estrutura econômica a partir de dentro, incessantemente destruindo a velha, incessantemente criando uma nova.
Em resumo, o sistema de mercado capitalista busca o ilimitado, se funda em si mesmo e está em constante processo de transformação, de destruição criativa. É um sistema oposto e incompatível com a cosmovisão do mundo tradicional, com sua estabilidade e o pressuposto de que existe uma realidade essencial acessível ao conhecimento metafísico de um observador privilegiado.
Penso que vale a pena trazer aqui uma questão levantada por Niklas Luhman, na sua crítica à concepção metafísica da realidade, no seu livro “A Systems Theory of Religion”: “shifting the point of departure to operative constructivism and emphasizing the operative presuppositions of each cognition lead us to a completely different problem. If the world and the (continuously presupposed) adaptation of systems are removing themselves from observation and, even more, from cognitive processing, then how can the system develop trust in something like meaning?” Ele responde: “One does not have to go far to see that religion is responsible for this.”11
O que nos interessa aqui é a pergunta pelo fundamento da confiança nos significados e valores em um sistema social em constante transformação, especialmente do sistema de mercado capitalista.
Segundo John Dominc Crossan e Jonathan Reed, o culto ao imperador, no Império Romano, era como the glue that held the civilized world together.12Segundo J. Rieger, “this cult was not just legitimization of the emperor and his empire; it played an active role in the construction of empire.”13A pergunta que devemos fazer é: O que funciona como essa “cola” que mantém o sistema capitalista funcionando e expandindo pelo mundo hoje? Qual é a religião que permite ao sistema capitalista manter confiança nos seus valores e significados fundamentais e assim permitir a sua reprodução e expansão? Se nos lembrarmos das três características do capitalismo mencionados acima, podemos perceber quão importante é essa tarefa. Vimos acima que as religiões tradicionais não cumprem mais essa função.
A nossa hipótese é que o próprio sistema de mercado capitalista se constituiu com uma estrutura religiosa e funciona como uma religião e se autofundamenta. Em outras palavras, o que possibilita a estabilidade de sentido, de valores e do funcionamento desse sistema instável e evolutiva por sua própria lógica é a fé no mercado e na sua promessa. A tese de Luhman, aplicada à análise do capitalismo, nos permite entender a razão de tantas referências e da importância da noção de “fé no mercado” nas argumentações nos textos de economistas, teóricos da administração e ideólogos pró-capitalismo.
Já é bastante conhecida a noção de “mão invisível” do mercado na obra de Adam Smith. Em outro texto, Subject, Capitalism and Religion, eu analisei o papel da fé no mercado no pensamento de F. Hayek. Aqui eu quero trazer como um exemplo, um texto de Joseph Stiglitz, um economista premiado com Nobel. No seu livro “. Freefall? America, Free Markets, and the Sinking of the World Economy”, ele diz que “Modern economics, with its faith in free markets and globalization, had promised prosperity for all”14 e que “One might have thought that with the crisis of 2008, the debate over market fundamentalism –the notion that unfettered markets by themselves can ensure economic prosperity and growth—would be over.”15
Stiglitz usa dois conceitos da religião “faith” e “fundamentalism” para criticar, não uma fórmula específica da teoria ecobnômica, mas o modo como os economistas capitalistas se relacionam com o sistema de mercado. Em outras palavras, o que dá fundamento à visão global do sistema de mercado é a fé no mercado e o “market fundamentalism”. Essa crítica de Stiglitz, no entanto, não nos leva a uma visão do sistema capitalista que não seja fundada em algum tipo de fé. Ele diz: “I believe that markets lie at heart of every successful economy but that markets do not work well on their own. […] Government needs to play a role; […] Economies need a balance between the role of markets and the role of government –with important contributions by nonmarket and nongovernmental institutions.”16 Ele critica a fé neoliberal no mercado totalmente livre, mas não abandona a fé de que não é possível uma economia de sucesso sem o sistema de mercado. O que ele propõe é a fé no sistema capitalista entendido em um sentido mais amplo do que os neoliberais: o mercado está no cerne, mas é preciso que o governo e as organizações não governamentais trabalhem em torno e em conjunto com o mercado.
Toda fé pressupõe uma promessa. Como um exemplo da síntese dessa promessa, eu quero citar aqui um texto de Francis Fukuyama. He affirms that the “good news has come”17 with liberal capitalist system. “The progressive conquest of nature made possible with the development of the scientific method in the sixteenth and seventeenth centuries has proceeded according to certain definite rules laid down not by man, but by nature and nature’s laws. (...) Technology makes possible the limitless accumulation of wealth, and thus the satisfaction of an ever-expanding set of human desires”18
For Fukuyama the secret of the paradise, the satisfaction of all human desires, lies in the limitless progress that makes possible the accumulation of wealth. He not only explains how the human being, who is finite, by working out nature, which is also finite, can arrive to the infinite accumulation. And here is the secret of the myth: the passage from “finite” to “infinite” without rational or reasonable explanation. The problem is that without this undue passage neither is the myth of progress possible nor can it be said that we are about to arrive at the Promised Land. That is why this is “mythical-religious”.
4. Religious pluralism and suffering.
Paul Knitter, em um artigo muito interessante, também assume a tese de que o sistema de mercado capitalista funciona como uma religião. E afirma que “The Free Market needs dialogue with the religious communities of the world for the simple and disquieting reason that the market isn’t working. In its present state, both nationally here in the United States and globally throughout the world, the Free Market Economy is a religion that is not achieving its intended end, its stated goals.”19
A proposta de que o sistema de Mercado livre dialogue com as outras religiões pressupõe que o ele seja uma religião entre as outras. Mas, penso que o sistema capitalista de fato funciona como uma religião, mas não é uma religião entre as outras. Talvez a ideia de David Loy de que “our present economic system can also be understood as a global or globalizing religion, because it serves a religious function for us”20 pode nos ajudar. O sistema capitalista funciona como “global or globalizing religion”, dentro do qual as religiões tradicionais funcionam como religiões “parciais” e subordinadas. É por isso que podemos propor “pluralismo religioso” sem criar sérios problemas para o sistema.
O diálogo frutífero então não se daria entre as religiões, dentre as quais o capitalismo como religião, mas entre as religiões, no sentido tradicional, que dialogaria sobre o capitalismo. Aqui é importante explicitar que pluralismo religioso não é algo que existem “em si”, mas só se realiza através de diálogos. E o diálogo, como dizia Paulo Freire, não é uma relação entre “eu e tu”, mas é um encontro de seres humanos e de grupos que dialogam sobre o mundo a ser transformado, sobre um problema ou objetivo comum. Em outras palavras, só é possível um diálogo que promova o pluralismo religioso na medida em que os participantes do diálogo tenham o objetivo comum. No tema aqui tratado, o objetivo de construir uma sociedade econômica e socialmente mais justa. Isso significa que grupos de diversas religiões que estão de acordo com o atual sistema econômico não participariam desse debate porque não compartilham do mesmo objetivo de transformar o sistema econômico.
Um diálogo que promova um verdadeiro pluralismo religioso não pressupõe somente o respeito pela religião do outro, mas também a mesma posição ética e espiritual frente aos sofrimentos humanos e danos ambientais causados pelo capitalismo global. Com bem diz Paul Knitter, mais importante do que a discussão sobre o que significa a justiça e a justiça para quem, é a questão do sofrimento. “And while justice may call for deliberation, suffering calls for response.”21
Em todas as religiões encontramos linhas de pensamento que justificam os sofrimentos humanos através da lógica sacrificial. A lógica que diz que o sofrimento é causado pelos pecados – portanto merecidos– ou é uma exigência dos deuses em troca da salvação. Essa teologia sacrificial também está presente no cerne da ideologia capitalista atual.
John K. Galbraith called this a "culture of contentment." According to this culture, the wealth of the rich is simply deserved and if "good fortune [is] earned or the reward of merit, there is no equitable justification for any action that impairs it- that subtracts from what is enjoyed or might be enjoyed." 22This means that the suffering of the poor is also deserved for their incompetence or lack of effort at work. Of course, this notion of "fair distribution" of wealth requires a judge, the Market, who is seen as omniscient, perfectly just, and powerful enough to impose their will upon the world -- characteristics that are attributed to divine beings.
Para criticarmos essa teologia sacrificial do sistema de Mercado capitalista, precisamos também criticar as nossas próprias religiões naquilo que tem de sacrificial, que justifica sofrimentos e injustiças. A Teologia da Libertação, desde o seu início, assumiu como um das suas tarefas a crítica da teologia cristã e do próprio cristianismo pela perda do seu caráter profético e a aliança com o poder estabelecido. Nessa mesma linha, Chirstopher Ives diz “until very recently, Buddhist has lacked any tradition of prophetic critique. Quite to the contrary, in most Asian countries Buddhist institutions have acquiesced to actions, policies, and structures that might be denounced as contrary to Buddhist ethical values, in part because of the degree to which they have pursued their interests symbiotically with ruling elites.”23
Em resumo, a nossa apresentação procurou mostrar que: a) o debate e a proposta do pluralismo religioso hoje se dá em um contexto muito diferente do passado porque o sistema capitalista global, dentro do qual se dá o fenômeno do pluralismo religioso, funciona como uma religião; b) o diálogo inter-religioso e a proposta de pluralismo religioso só serão socialmente relevante hoje na medida em que for capaz de desvendar e criticar o caráter religioso e idolátrico do sistema de mercado capitalista global; c) as religiões podem contribuir para a sociedade global, para além das suas próprias religiões, na medida em que forem capazes de auto-crítica e se colocam a serviço da defesa da vida dos mais vulneráveis, como uma resposta ao sofrimento do outro.
Por fim, essas reflexões nos levanta um desafio para o estudo da religião: repensar a noção de religião com que trabalhamos nas ciências da religião e na teologia. A religião compreendida como um fenômeno social contraposta a secularização e à razão é uma construção do mundo moderno que precisa ser superada. Ela esconde o fato de que o capitalismo funciona como religião e leva a uma compreensão equivocada do lugar e o papel das religiões tradicionais no mundo de hoje.
1 EATWOT's International Theological Commission. Towards a Work Agenda for Planetary Theology. VOICES. New Series, Volume XXXV, Number 2012/3-4, July-December 2012, p. 19.
2 CROATTO. J. Severino. “Os deuses da opressão”. Em: VVAA. A luta dos deuses: os ídolos da opressão e a busca do Deus libertador. São Paulo: Paulinas, 1982, pp. 39-66. Citado das pp. 39-40.
3 LÖWY, Michael. A guerra dos deuses: Religião e política na América Latina. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 9. (orig. inglês: The War of Gods. Religion and Politics in Latin America, 1996)
4 Vide, MASUZAWA, Tomoko. The Invention of World Religions. 5a ed., Chicago: The University of Chicago Press, 2012.
5 EATWOT's International Theological Commission. Towards a Work Agenda for Planetary Theology. VOICES. New Series, Volume XXXV, Number 2012/3-4, July-December 2012, p. 19
6 VIGIL, José Maria. O debate atual da Teologia do Pluralismo depois da Dominus Iesus. In. VIGIL, J.M. (ed). O debate atual da Teologia do Pluralismo depois da Dominus Iesus. Libros Digitales Koinonia, 2005, Disponível na internet: servicioskoinonia.org/LibrosDigitales, pp. 87-88.
7 Publicados em 1985 por Ralph Tiedemann e Hermann Schweppenhäuser no volume 6 de "Gesammelte Schriften" (Suhrkamp Verlag)
8 VVAA. A luta dos deuses: os ídolos da opressão e a busca do Deus libertador. São Paulo: Paulinas, 1982, p. 7.
14 STIGLITZ, Joseph. Freefall? America, Free Markets, and the Sinking of the World Economy. Now York: W.W. Norton & Company, 2010, p. xi.
19 KNITTER, Paul. Prophets and Profits: Interreligious Dialogue and Economic Development. In: CORNILLE, Catherine & WILLIS, Glenn. The World Market and Interreligious Dialogue. Euge: Cascade Books, 2011, pp. 3-27. Citado da p. 6.
20 David R. The Poverty of Economic Development. In: CORNILLE, Catherine & WILLIS, Glenn. The World Market and Interreligious Dialogue. Euge: Cascade Books, 2011, pp. 91-106. Citado da p. 92.
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